Não sei se os brasileiros e o mundo se interessam em saber que o presidente Jair Bolsonaro conhece até os mínimos detalhes de como torturavam e matavam na ditadura. Não se trata de um segredo. Foi ele mesmo quem revelou. Sabia-se que era um defensor da ditadura militar e dos seus mortos, do mesmo jeito que era conhecida a sua admiração pelos torturadores. O que ele próprio agora acaba de dizer é que conhece as minúcias de como se torturava e matava no Brasil durante aquele período obscuro.
Santa Cruz tinha dois anos quando seu pai desapareceu para sempre, levado, como tantos outros, pela ditadura militar, acusado de ter participado da luta armada — embora não figure como membro de grupos armados no registro da Comissão da Verdade, responsável pela análise dos fatos daquele período.
Agora,
os brasileiros sabem não apenas que Bolsonaro nunca escondeu suas
simpatias pela ditadura e seus métodos, mas que também conhece muito
além do que se imaginava sobre as atrocidades cometidas. Cabe perguntar
como e por que ele conhece os horrores de um tempo que a grande maioria
dos brasileiros preferiria que nunca tivesse existido. Não é difícil
imaginar o que o presidente da OAB, que tinha dois anos quando seu pai
foi torturado e morto, teria sentido ao ouvir dos lábios do presidente
da República que ele sabe como seu pai morreu. E que pode lhe contar.
No livro Memórias de Uma Guerra Suja,
do ex-policial do DOPS Cláudio Guerra, lê-se que o pai do presidente da
OAB foi “incinerado no forno de uma fábrica de açúcar em Campos”. Agora
Bolsonaro insinua que sabe mais sobre aquele assassinato e ameaça
contar ao filho, o que causa aflição e revela uma veia de desumanidade
em quem deveria, por seu cargo, dar, ao contrário, um exemplo de defesa
da paz e da harmonia entre todos os brasileiros.
Continuar
com a política suicida de dividir os cidadãos, apresentando-se sempre
como próximo de tudo o que cheira a violência, desafio e uso das armas,
só pode fazer com que até as pessoas que um dia confiaram nele para
conduzir o destino do país hoje se sintam arrependidas e escandalizadas.
Se
um presidente da República não entende que, uma vez eleito, deve ser
não só o responsável pelo país, mas também por todos os brasileiros, e
que deve propiciar paz ao invés de semear discórdias, os resultados
podem ser perversos.
Minha esperança é que o desafio de
Bolsonaro ao presidente da OAB, de revelar a forma atroz como mataram
seu pai, possa criar um calafrio de medo e desilusão na grande maioria
dos brasileiros que nunca teriam querido que alguém brincasse de
desafiá-los contando como torturaram seus pais. Há sentimentos humanos
que devem superar todas as ideologias. Quando, na luta política,
perdemos o senso de dignidade e respeito pelo outro, abrimos o caminho
que, ao longo da história, forjou os monstros da crueldade.
A
revelação macabra de Bolsonaro ao presidente da OAB, de que ele sabe
como eliminaram seu pai e pode contar se quiser, me fez lembrar de uma
história ocorrida durante a ditadura do general Franco,
na Espanha, quando se torturava e matava. Terminada a refeição,
apresentaram ao Generalíssimo a lista dos que seriam fuzilados no dia
seguinte. Franco aprovava e se divertia desenhando uma flor em nome de
cada um. Em Madri, um advogado amigo meu me contou que uma vez tinham
lhe avisado que naquela manhã torturariam uma pessoa com quem ele um dia
havia discutido e desfeito a amizade. Ofereciam-lhe a oportunidade de
presenciar a tortura e, se quisesse, “até participar dela”. Meu amigo me
disse apenas: “São uns canalhas.” Sempre sonhei em ter um dia um
presidente capaz de chamar de canalhas os que desfrutam da dor alheia,
da vingança e da crueldade.
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DW
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