Os 12 milhões de habitantes de São Paulo sempre conviveram com o mau tempo, mas na segunda-feira passada as nuvens escureceram o céu e a noite caiu às três horas da tarde. Pouco depois, os paulistanos souberam que, além da chuva, havia fumaça. O suficiente para causar um efeito óptico que deixou o céu quase negro. Fumaça da Amazônia. Dos incêndios que se estendem por áreas de floresta de cinco Estados brasileiros e que, de acordo com os especialistas e ambientalistas, são o resultado de um desmatamento que se acelera sob o Governo de Jair Bolsonaro. E com seu respaldo, ainda que indireto: o presidente flexibilizou os controles ambientais, como havia prometido, e pretende permitir a mineração em terras indígenas. Alguns membros de seu Gabinete, como o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, questionam o aquecimento global.
A 3.000 quilômetros de distância em direção ao norte, em Rondônia, o território indígena dos Uru-eu-Wau-Wau queima. Nos últimos meses, sofreu sucessivas invasões que causaram desmatamento e, na sequência, incêndios para abrir o terreno. "Estamos denunciando desde janeiro", conta Ivaneide Bandeira, da ONG Kanindé Associação de Defesa Etnoambiental. A fumaça que sai da reserva indígena, em teoria protegida pelo Governo Federal, viaja 400 quilômetros e chega com força à capital Porto Velho, onde mora a ativista. Em imagens divulgadas nas redes sociais se vê uma espessa névoa que faz com que mal se possa respirar. Os hospitais estão abarrotados. "Em meu bairro a sensação é de que o mundo está caindo sobre nós", conta por telefone.
Os incêndios são comuns nessa época de seca
na região e nem sempre são ilegais. Os dados indicam, entretanto, que
as autoridades perderam o controle sobre a situação e que o país vive a
maior onda de incêndios dos últimos cinco anos, de acordo com o
Instituto Nacional de Investigação Espacial (INPE). Entre 1 de janeiro e
22 de agosto foram registrados 76.720 focos de incêndios, 85% a mais do
que no mesmo período de 2018 (quando houve 41.400). Os satélites
mostram que mais de 80% do território devorado pelas chamas está na
Amazônia.
Os mesmos satélites utilizados pelo INPE
indicam que o desmatamento aumentou 34% em maio, 88% em junho e 212% em
julho em relação aos mesmos meses de 2018. Bolsonaro criticou a
instituição e seus números em um encontro com jornalistas. O físico
Ricardo Galvão, que comandava o INPE, contradisse publicamente o presidente e foi exonerado. Desde estão, a Amazônia está na mira internacional.
"O
Brasil era um vilão ambiental. Mas desde que começamos a reduzir o
desmatamento, nos transformamos em líderes na agenda ambiental global.
Agora voltamos a uma situação até mesmo pior do que a que tínhamos na
década de oitenta", diz a ex-ministra e ex-candidata presidencial Marina Silva.
Ela agora elabora com outros ex-ministros e membros da sociedade civil
uma carta ao Congresso pedindo que sejam suspensos os projetos para
afrouxar as leis ambientais e a criação de uma comissão para debater
políticas que combatam a crise ambiental. "Infelizmente, o que está
acontecendo se deve às políticas desastrosas e irresponsáveis do Governo de Bolsonaro, que não tem competência para lidar com essa situação", afirma.
"Nem
todos os incêndios estão relacionados ao desmatamento, mas os satélites
indicam um aumento substancial dos fenômenos. São consequência
basicamente das políticas do novo Governo, que incentiva a ocupação
ilegal de terras na Amazônia e, consequentemente, a ocorrência dos
incêndios ilegais", diz Paulo Artaxo, professor de Física da
Universidade de São Paulo.
O especialista, que fez parte
do Painel Governamental da Mudança Climática das Nações Unidas, diz que
ainda é preciso fazer uma comparação mais detalhada entre as áreas
desmatadas e as destruídas pelo fogo. Mas os especialistas dão como
certo de que os aumentos dos dois fenômenos estão relacionados. Um levantamento do site InfoAmazonia,
com base em dados públicos, indica que entre os dez municípios com mais
incêndios, sete estão entre os que também mais sofreram com
desmatamento anterior. Um relatório do Instituto de Pesquisa Ambiental
da Amazônia (IPAM) chega à mesma conclusão.

As
principais instituições do Ministério do Meio Ambiente são o IBAMA
(Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis), responsável pela fiscalização e preservação de áreas
naturais, e o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade), órgão responsável pela formação de áreas de
conservação. Bolsonaro colocou em andamento uma série de mudanças que
tiram responsabilidades desses órgãos que, como denunciam ambientalistas
e uma inédita aliança de oito ex-ministros,
desmantelam a política ambiental brasileira. "Sempre houve
desmatamento, mas agora é promovida pelo ministro, que desmantelou a
governança ambiental", diz Marina Silva.
Cortes do Orçamento
Os
cortes orçamentários também tiveram seu efeito. A prevenção e o
controle de incêndios perderam 38,4% de seu Orçamento. "Nas proximidades
de Porto Velho vejo bombeiros controlando os incêndios. Mas os órgãos
não possuem meios suficientes para deter a invasão do território
indígena", diz a ativista Ivaneide Bandeira.
Parte dos
focos ocorre em áreas privadas que se expandem em direção à reserva
natural que todas as propriedades têm obrigação de manter. Outra parte
ocorre em áreas públicas protegidas e em territórios indígenas
protegidos que sempre estiveram ameaçados por invasores, madeireiros e
fazendeiros que querem invadir a terra. Há áreas ricas em minerais como o
ouro e árvores centenárias em risco de extinção. E, principalmente, um
espaço enorme que pode se transformar em pasto para o gado. Em todos
esses casos é preciso abrir o terreno. E isso é sempre feito com fogo.
Ivar
Busatto é coordenador da ONG Operação Amazônia Nativa no Mato Grosso,
um dos territórios que mais sofrem com a seca —não chove há 90 dias— e
que foram atingidos pelos incêndios. Sua organização contabilizou 24
focos em nove comunidades indígenas. "Moro aqui há 48 anos e sempre
existiu fogo", diz. A seca é severa, com previsão de chuva somente no
final de setembro. Nesse período é proibido por lei utilizar o fogo para
qualquer atividade.
Seu Estado vive do negócio agrícola e
produz parte da soja e do milho que o país exporta. O fogo serve para
limpar os campos e para que os fazendeiros se expandam, legal e
ilegalmente em direção a territórios protegidos. Parte da vegetação
nativa já não existe. Mas agora, quando todos os olhos do mundo estão
voltados às matas do Brasil, até o agronegócio se preocupa com as ações
ambientais. A pressão internacional pode resultar em medidas drásticas,
como sanções ao comércio brasileiro ou até a não ratificação do acordo
entre o Mercosul e a União Europeia, como sugeriu o presidente francês Emmanuel Macron, na última quinta-feira, e o presidente do Conselho Europeu, neste sábado.
- Confira a ação das aeronaves C-130 Hércules, da nossa Força Aérea, no combate aos focos de incêndio na Amazônia, partindo de Porto Velho (RO)! via @DefesaGovBr pic.twitter.com/kcBuFHhsbY— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) 24 de agosto de 2019
Enquanto o G7, grupo dos países mais ricos do mundo, se reúne em
Biarritz e coloca entre suas pautas a Amazônia brasileira, o Governo
Bolsonaro, que chegou a sugerir que ONGs eram suspeitas da onda de
incêndio, toma suas primeiras ações concretas para conter o fogo que
devasta a floresta há semanas. "Mais de 43.000 militares das Forças
Armadas reforçam ações de combate a incêndios na Amazônia", comemorou o
presidente neste sábado, no Twitter. Ele compartilhou também imagens de
aeronaves militares despejando água sobre as queimadas, nas primeiras
missões após a decretação, nesta sexta, da chamada "GLO Ambiental", como ficou conhecida a Garantia da Lei e da Ordem voltada para a floresta.
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Felipe Betim
El País
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