É difícil escrever mensalmente sem tocar em temas sensíveis que eu preferiria não abordar. É o caso agora. Foram tantos os gols contra praticados pelo Governo atual que não há modo de deixá-los de lado. Pior, passei três dias na Argentina na semana anterior e lá participei de um encontro promovido pelo jornal Clarín em que estavam presentes e em diálogo público Macri e Fernandez. Não pude fugir da imprensa local e da brasileira. Queriam saber, naturalmente, dos “temas quentes” sobre o Brasil.
Assim,
com luvas de pelicas, de volta ao Brasil, vamos ao que interessa. É
indiscutível que o Brasil, no exterior, marcha para ser a gata
borralheira. Também com o desaguisado presidencial na questão do meio ambiente,
nas supostas relações com as “milícias”, em casos de nepotismo, e por
aí vai, é difícil contestar a avalanche de críticas e afirmações, nem
sempre corretas, que desaguam nas mídias mais influentes do estrangeiro.
Por que e para que isso?
Aparentemente, o presidente e seu círculo mais íntimo
parecem não haver entendido que não estamos mais na Guerra Fria. Não há
mais o confronto entre dois blocos ideológicos. Mesmo Trump,
capitaneando uma relação comercial belicosa com a China
e pensando em levantar muros na fronteira mexicana, não se pauta pela
lógica bipolar de um mundo dividido entre esquerda e direita. Nem a
China. E muito menos a Europa. Qual o sentido, pois, em fazer desaforos ao presidente da França e sua esposa, em ressuscitar um nacionalismo anacrônico parecido ao que aflorou (à época com maior razão) diante do projeto de um think tank americano, Hudson Institute, que nos anos 60 aventou a ideia estapafúrdia de transformar a Amazônia em um grande canal de navegação alternativo ao do Panamá?
A reação dos europeus ao aumento das queimadas na Amazônia
responde a motivos distintos e não se deu de forma uniforme. Há uma
preocupação genuína com questões que têm impactos globais (mudança climática
e extinção da biodiversidade). Existem também razões menos universais,
como a defesa de interesses protecionistas, e motivações
circunstanciais, como o receio de derrotas em eleições locais a se
realizar no próximo ano. Em lugar de reagir toscamente, negando dados
empíricos e insultando cientistas e chefes de estado de outros países,
deveríamos ter reagido prontamente para combater as queimadas e mostrar,
na prática, o compromisso soberano do Brasil com a proteção do meio ambiente. Não há meio mais eficaz para desinflar a conjectura inaceitável sobre conferir um estatuto internacional à Amazônia.
Nessas horas precisamos de bom senso e racionalidade,
virtudes difíceis em um país polarizado. Patriotismo não se mede por
bravatas nacionalistas, sobretudo quando insultuosas. A proteção do
bioma amazônico é, acima de tudo, do interesse do Brasil, um interesse
coincidente com o dos demais países que compartilham esse bioma e também
com o do planeta. Dadas as restrições fiscais, recursos do exterior são
bem-vindos. Não nos falta capacidade para bem administrá-los, com
transparência, e em parceria com a sociedade civil, que pode e deve ser
aliada e não inimiga na preservação do meio ambiente e na realização de
projetos de desenvolvimento.
Há queimadas que em parte são cíclicas, em parte são
legais, mas em grande parte (é preciso avaliar o tamanho) são
criminosas: derrubada ilegal de mata para queimá-la e transformar a
floresta em pasto ou em áreas para grãos. Se nos faltasse terra, vá lá,
caberia a discussão sobre o que fazer. Mas elas são abundantes e o
agronegócio brasileiro, aquele que opera dentro da legalidade, não
precisa depredar para ser competitivo. Ao contrário, só continuará a ser
competitivo se não depredar, como prevê a Constituição e está estatuído
nas leis.
Enquanto vozes lúcidas do agronegócio
clamam por racionalidade, no Governo há quem insista em distorcer os
fatos. Como se fosse pouco negar a validade de dados científicos,
busca-se transformar vítimas em algozes. Nessa linha, aponta-se a
demarcação de terras indígenas como o grande obstáculo para o
desenvolvimento da Amazônia.
É essa retórica de desinformação, insulto e incentivo a
práticas ilegais, reiterada ao longo de oito meses, a principal
responsável pela crise atual. De um lado, ela abriu a porteira para que
os interessados no desmatamento ilegal se sentissem autorizados a tocar
fogo no cerrado e na floresta. De outro, deu o pretexto para que a
defesa de interesses protecionistas se revestisse com a capa de
legitimidade da preocupação ambiental. A retórica oficial tem sido
danosa aos interesses do Brasil. Pode colocar em risco, até mesmo, o acordo do Mercosul com a União Europeia.
De positivo nesse quadro, só há dois pontos a destacar:
primeiro, a reação rápida e vigorosa de vários setores da sociedade
brasileira; segundo, a prontidão das Forças Armadas em responder à
situação de emergência provocada pelo descontrole das queimadas na
região amazônica.
Com tanto horror perante os céus, como disse um poeta,
devemos aguentar firmes (imprensa, Congresso, Judiciários, líderes
empresariais e da sociedade civil) para não deixar que arroubos
personalistas e interesses familiares comprometam o futuro do país.
Creio que foi Octávio Mangabeira quem disse: a democracia é
como uma plantinha tenra, precisa ser regada todos os dias para
crescer. Trata-se agora de preservá-la. Como mostram muitos livros
recentes sobre a crise da democracia, a forma moderna de corrompê-la não
passa por golpes militares, mas por atos governamentais que, quando não
encontram reação à altura, pouco a pouco lhe vão arrancando as fibras.
O preço da liberdade é a eterna vigilância. É preciso nos
manter atentos e fortes para que as instituições do Estado continuem a
cumprir, com independência, as obrigações impostas pela Constituição.
conteúdo
Fernando Henrique Cardoso
El País
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