Acredito que restam poucas dúvidas. Bolsonaro está devorando Moro. Ora, mas eles não apareceram abraçados e felizes no sábado, no desfile de 7 de setembro? Isso foi só uma fachada, porque Bolsonaro, ao mesmo tempo em que está dessangrando seu ministro da Justiça, sabe que hoje sua popularidade está muito abaixo da de seu ministro.
Moro sempre foi, e continua sendo, um juiz esfinge. Mesmo nas conversas vazadas dele com procuradores, reveladas pelo The Intercept,
ele é o mais parco em palavras. Ao contrário de alguns loquazes
colaboradores dele, Moro se mostra mais recolhido. E, ao contrário do
desbocado Bolsonaro, Moro é quase mudo até com a imprensa. Raramente dá
uma notícia. E jamais põe em discussão seu chefe. É a prudência por
excelência.
Seria o caso de perguntar como uma
personalidade recolhida e esquiva como o ex-juiz Moro, que continua,
talvez por isso, sendo o personagem político com maior aprovação popular,
pôde querer comprometer sua brilhante carreira, reconhecida no mundo
todo, para se tornar, segundo a definição irônica do presidente da
Câmara, Rodrigo Maia, um simples “funcionário de Bolsonaro”.
A
resposta mais óbvia seria que Moro, apesar de sua sagacidade e
capacidade estratégica, levada às vezes ao limite da lei, pensou que
poderia dominar o ex-paraquedista e capitão da reserva, por muito
presidente que fosse.
Ao lado de um Bolsonaro com uma
bagagem intelectual vazia e ao qual, como dizia o velho estadista
italiano Giulio Andreotti sobre os políticos espanhóis, “manca finezza” (“falta finesse”), Moro pode ter pensado que ele, com sua fama e sua biografia, seria não só o herói do Governo,
a estrela, mas também seu mentor e até o sucessor de Bolsonaro. Lúcifer
também teve, um dia, a ilusão de que, com sua inteligência, podia se
dar ao luxo de desafiar o poder do céu. Caiu. Virou o diabo.
É
verdade, embora poucos tenham destacado, que Moro tinha mais pontos de
identidade em sua ideologia com Bolsonaro do que muitos pensavam. Por
exemplo, o ex-juiz é da direita liberal, como o presidente, embora sem
suas estridências e excentricidades, e sem sua linguagem chula e até
vulgar. Sua formação em Harvard e sua personalidade proíbem isso.
Moro,
no modo de encarar a luta contra a violência, de usar seus métodos
heterodoxos, sua dureza com os acusados, suas decisões drásticas, seus
decretos, já como ministro, para “deportar” os estrangeiros indesejados
ou sua benevolência com os policiais valentões, não é tão diferente de
seu chefe político atual. Poderia se entender melhor com ele do que, por
exemplo, com o intelectual e democrático ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na dureza ao julgar.
Diante
de um processo judicial, não sei se Bolsonaro, se fosse juiz, seria
mais duro e perigoso que Moro. Essa identidade com Bolsonaro ao abordar o problema da violência e a severidade com aqueles que cometem crimes podem ter feito com que Moro não tenha tido medo de aceitar o desafio do extremista direitista e autoritário Bolsonaro, amante até da tortura e da pena de morte.
Não
acredito, como alguém pensou, que Moro tenha deixado seu tribunal
porque já considerava esgotada sua missão e, embora famoso no mundo, no
fim das contas era apenas um juiz de primeira instância. Ou que Curitiba
já lhe parecesse pequena para os limites que sua fama tinha
ultrapassado e ele sonhasse com o Supremo, se é que até este não lhe
parecesse pouco. Mais que isso, pode ter sido a última tentação, a
última aventura juvenil de transferir sua fama de juiz duro, que
infundia medo até nos grandes, para o jardim proibido do poder político.
As
elucubrações sobre as misteriosas relações entre Moro e Bolsonaro
fervilham a cada dia e aumenta o número de pitonisas que tentam saber
esse destino final. Na verdade, é quase impossível saber hoje quais são
os cálculos de Moro, do qual se diz abertamente que estaria se
preparando para suceder ao mito, já que ele se sente mais mito do que o
presidente e até mais ungido popularmente.
Ela certamente não deixa de ficar lisonjeado com o resultado da
pesquisa mais recente, que lhe confere 54% de aprovação, em comparação
com 29% de seu chefe.
A pergunta, no entanto, continua de pé, misteriosa e indecifrável: será que o mito Bolsonaro permitirá que nasça de seu seio um novo herói que o substitua?
Assim como os incapazes que conseguem chegar ao poder acabam sendo os
mais perigosos na hora de usar sua força de destruição para suprir o que
a inteligência lhes negou, Bolsonaro jamais permitirá que alguém seja
mais mito que ele.
Teoricamente, neste momento Moro teria
tudo para perder sua arriscada aposta de entrar com força na política.
Está nas mãos do poder, que é muito, do presidente da República. Se é
verdade que hoje aparece em todas as pesquisas como o político mais
aplaudido, também é certo que a glória da qual gozava como simples juiz
de primeira instância tinha maior esplendor, até internacional, que a de
“dependente” do Governo Bolsonaro, cuja impopularidade mundial poderia
acabar comprometendo-o.
Moro derrubou as pontes de sua glória na justiça pouco antes de aparecerem as comprometedoras conversas divulgadas pelo The Intercept,
que revelam, embora ilegalmente, que talvez sua atuação como juiz
implacável com os poderosos, que levou à prisão o popular ex-presidente
Lula, parecia ser, já naquela ocasião, tão política quanto, ou mais do
que, judicial.
Quem o conhece de perto diz que Moro é
frio em suas decisões e calculista como poucos, um bom jogador de xadrez
que sabe quando mover as peças e aguarda sem pressa o momento para dar o
xeque-mate. Talvez Bolsonaro, que também gosta de se arriscar no
xadrez, no qual se identifica com o rei, mas sem a frieza e técnica de
Moro, pense que com seu poder possa continuar usando o mito da Lava Jato
enquanto isso lhe servir. O presidente já lembrou ao ex-juiz que no
Governo em que este aceitou entrar, embora pela porta grande, quem manda
é ele e só ele. Abraços e sorrisos em público são apenas paliativos
para esconder do grande público a dissidência que os devora.
E é verdade que hoje, fora do Governo,
Moro também começou a perder sua antiga força de Sansão, temida pelos
filisteus da política que ele tinha em suas mãos. Hoje a força de seus
cabelos está se esgotando e poderia estar à espreita, em qualquer
esquina, um golpe de misericórdia dos poderosos que antes o temiam e
hoje esperam apenas seu descalabro.
A não ser que o
ex-juiz esconda em sua manga alguns segredos que poderia usar a qualquer
momento. Talvez, dentro daquele que foi seu reino indiscutível de
poder, que fazia tremer os grandes e até ontem intocáveis, ele possa
conservar, ou acredite conservar, um poder de chantagem que
desconhecemos.
Talvez soe como um paradoxo, mas Moro e
Bolsonaro, tão iguais e tão diferentes, poderiam ser dois galos que
gostam mais do que parece de uma briga. Bolsonaro sabe ameaçar mais e
sente prazer mostrando seus esporões. Moro grita mais com seu silêncio e
com seu duro rosto franzido. Ambos podem acabar juntos ou em conflito.
Não é, no entanto, difícil imaginar que, neste último caso, a luta
política seria, metaforicamente, sangrenta.
conteúdo
Juan Arias
El País
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