Com as contas públicas no vermelho há cinco anos e um rombo de 139 bilhões estimado para 2019, a equipe econômica do Governo Jair Bolsonaro apontou, no início desta semana, a possibilidade de propor um remédio amargo à população: retirar da Constituição a obrigatoriedade de que o salário mínimo seja reajustado pela inflação. Em outras palavras, a polêmica ideia —da qual o Governo acabou recuando nesta quinta—era congelar o valor do piso nacional durante os períodos de aperto fiscal para diminuir as despesas obrigatórias e, assim, não furar o teto de gastos, que, desde 2016, limita o aumento de custos e não permite que eles subam acima da inflação.
Pelos
cálculos da equipe econômica, a cada um real de elevação no salário
mínimo, as despesas do Governo sobem cerca de 300 milhões de reais,
sendo este um dos principais fatores do avanço dos gastos primários. Com
o congelamento, poderiam ser economizados até 35 bilhões em um ano.
Segundo um estudo da Secretaria de Política Econômica (SPE) do
Ministério de Economia, reajustes vinculados à inflação e ao salário
mínimo representam 46% do gasto primário. O aumento é elevado porque uma
série de benefícios sociais, como o Benefício de Prestação Continuada
(BPC), o abono salarial (valor extra pago ao trabalhador que recebe até
dois salários mínimos) e as aposentadorias são indexadas ao pagamento
mínimo e tem um aumento proporcional. Por isso mesmo, neste ano, o Governo já havia determinado que o valor do salário de 2020 deverá apenas repor as perdas inflacionárias, e não mais considerar o crescimento da economia do país, como vinha acontecendo desde 2011. A equipe do ministro Paulo Guedes estima que o reajuste do próximo ano levará o salário de 998 reais para 1.039 reais.
Entre
1997 e 2017, o salário mínimo teve um avanço real de 166,7%. E esta
variação é apontada por pesquisadores como um dos fatores responsáveis
pela queda da pobreza no país nas últimas décadas e visto como de
extrema importância para a melhoria da qualidade de vida dos
brasileiros. "Vários estudiosos mostram que a política de valorização do
salário foi um importante mecanismo para reduzir a desigualdade. Se a
remuneração tivesse seguido nesses anos todos apenas pela inflação, o
salário seria hoje de 573 reais e não de 998 reais", explica o
economista Thales Nogueira, pesquisador da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Os 425 reais a mais trouxeram
consequências altas nas contas públicas, mas, ao mesmo tempo,
proporcionaram uma transferência de renda grande aos mais pobres e um
poder de compra que, segundo Nogueira, são efeitos que não podem ser
desprezados em momentos de crise econômica, como o que atravessamos
nestes últimos anos.
"O Governo precisa se perguntar o
quanto valeria essa economia fiscal comparada as perdas distributivas de
geração de renda. Mudando essa regra, haverá distorções econômicas,
diminuindo ainda mais a renda que já está em queda nas classes mais
pobres desde 2014. Vínhamos apresentando uma queda nos números de
desigualdade e, após a crise, ela começa a aumentar. É preciso fazer
escolhas", explica Nogueira.
Um estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas revela que depois da recessão (2015-2016), os brasileiros mais pobres amargam uma queda de mais de 20% da renda de trabalho acumulada, enquanto o estrato mais rico somou um aumento de 3,3% de renda.
Na
avaliação de Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), retirar
a garantia de reajustar o salário mínimo com a inflação significa
remover uma proteção aos mais pobres. "Por um problema fiscal, estão
querendo um arrocho salarial que afeta o lado mais fraco. Claro que o
problema fiscal existe, mas, em grande medida, porque a economia está
travada. É necessário destravá-la e não retirar, ainda mais, o poder de
consumo da população", afirma.
Para Nogueira, preservar
ou não o aumento nominal do salário não deveria estar na pauta. "Deveria
ser regra de ouro. Em um momento de crise, pelo menos a inflação
tem que ser mantida para garantir o poder de compra. A posteriori
talvez seja necessário pensar em uma nova fórmula, como vincular o
crescimento [do salário mínimo] ao PIB per capita que está mais
vinculado à produtividade", diz. De acordo com o pesquisador, a medida
afeta tanto trabalhadores registrados como os informais, que hoje já
representam cerca de 40% do mercado, já que o mínimo serve de base
também para as ofertas dos trabalhadores que não possuem carteira
assinada.
Ao reduzir o salário, o Governo também pode
colher efeitos na arrecadação. "Hoje, a cada real a menos do mínimo o
Governo deixa de receber 54 centavos em tributo. Então você pode até
economizar de um lado, mas há perdas do outro também", diz.
O
pesquisador da PUC ressalta ainda que é emblemático que, na mesma
semana em que se debateu uma possível mudança na regra de reajuste do
salário, também haja uma discussão sobre um novo Refis para os
ruralistas. "Essa renegociação das dívidas [dos produtores rurais]
geraria um custo de 11,7 bilhões de reais", explica.
Vilma
Pinto, pesquisadora da área de Economia Aplicada do FGV IBRE, concorda
que a proposta aventada pelo Governo visa puramente resolver a delicada
situação fiscal do país e exclui as consequências que podem ser geradas
no mercado de trabalho. "Primeiro, o Governo tentou desvincular o
salário da reforma da Previdência
e não conseguiu, por isso agora tenta novamente. É uma medida
emergencial, que não acredito que seja viável sem levar os impactos no
mercado de trabalho com essa perda real dos rendimentos", diz.
Medida deve sofrer resistência no Congresso
Na
avaliação de Pinto, caso o Governo não tivesse recuado da proposta
seria muito pouco provável que o Congresso a aceitasse, por se tratar de
um tema delicado e que afeta grande parte da população. "Você consegue
justificar uma Reforma da Previdência
por uma questão de bônus demográfico, da população se aposentar muito
cedo. Justifica a reforma Tributária por ter um sistema muito
ineficiente e complexo. Mas é difícil justificar o congelamento do
salário só porque as contas estão no vermelho. Não acredito que seja
suficiente", completa.
O próprio deputado federal Felipe
Rigioni (PSB- ES), relator na comissão especial da Câmara que discutirá a
PEC 438 já vinha dando mostras de seu desconforto. Ele ressaltou
durante a semana que a proposta de congelamento de salários não partiu
dele e que tampouco contava com seu apoio. Na quarta-feira, usou seu
Twitter para afirmar que o congelamento era "algo inviável". Nesta
quinta, Esteves Colnago, secretário especial adjunto de Fazenda do
Ministério da Economia, afirmou que o Governo não pretende adotar
qualquer medida neste sentido.
conteúdo
Heloísa Mendonça
São Paulo
El País
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