As liberdades mais fundamentais, sobretudo a liberdade de expressão, estão sofrendo um ataque sistemático no Brasil. A avaliação é do advogado e jornalista Edison Lanza, relator especial para a liberdade de expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos).
“Há um ataque ao Brasil aberto, democrático e plural construído desde a Constituição de 1988”, afirmou o uruguaio em entrevista ao EL PAÍS nesta segunda-feira. Horas mais tarde, Lanza e outras centenas de pessoas e autoridades lotavam o salão nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), no centro da capital paulista, para um ato público em defesa da democracia, da liberdade de imprensa e do jornalismo.
O encontro na USP foi promovido em razão do assédio e das ameaças recebidas pelos jornalistas The Intercept, em especial Glenn Greenwald, desde que o site começou a divulgar em parceria com outros meios, entre eles o EL PAÍS, o conteúdo de mensagens privadas trocadas no Telegram
entre procuradores da Operação Lava Jato, incluindo o ex-juiz e
ministro da Justiça Sergio Moro. "É preocupante o ataque à imprensa
independente ou que o Governo não controla: The Intercept, Globo, Folha, os jornalistas Patricia Campos Mello e Glenn Grennwald e colunistas. Quando o presidente faz uma campanha desacreditando jornalistas, o que faz é expô-los ao ódio de seus seguidores nas redes sociais", afirma Lanza.
O relator da OEA vê um ataque à liberdade de expressão não apenas no âmbito da imprensa como em sentido mais amplo, como no episódio de censura a livros de conteúdo LGBT ordenada pelo prefeito carioca, Marcelo Crivella, que acabou recebendo a chancela de uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Coube ao presidente do Supremo Tribunal Federal, Antonio Dias Toffoli, revogar a medida.
"É preocupante que alguns juízes não tenham ciência de quais são os
fundamentos básicos da democracia. Há um componente de polarização que
incentiva essas medidas equivocadas", explica Lanza. "A liberdade de
expressão é o que permite, sem repressão, a convivência de distintas
correntes de opinião e pensamento."
Para o relator da
OEA, "o Governo busca impor um relato que cria uma série de inimigos e
ideologias que deveriam estar censuradas ou excluídas do ambiente
artístico, acadêmico e político". Além disso, "parece querer se dar ao
direito de estabelecer quais são as ideias que devem prevalecer no
espaço público e quais devem ser descartadas em nome da cidadania",
acrescenta. Ele descreve o que chama de mecanismos para reduzir as
ideias no espaço público, "eliminando ou criando filtros para os
incentivos públicos ao cinema, privilegiando determinados meios de
comunicação em detrimento de outros, discriminando ideias, eliminando
dos textos públicos construções históricas de movimentos sociais, ou
ainda criando situações grotescas como a do Rio". O especialista se
refere, por exemplo, ao fato de que Jair Bolsonaro vem enunciando publicamente que deseja criar um "filtro" para a Agência Nacional do Audiovisual (Ancine).
"Existe um movimento político que explicitamente diz querer impor uma
narrativa, como ocorreu na Venezuela ou no Equador".
Lanza
pondera que os casos de Venezuela, Nicarágua e Cuba não podem ser
comparados ao brasileiro, uma vez que nesses três países a democracia e
as liberdades foram suprimidas. Contudo, ele chama atenção para um
padrão em expansão na América Latina de descrédito da democracia que vem
elegendo governantes "que não toleram críticas, perguntas ou
investigação" e que "promovem discriminação política e ideológica".
Neste sentido, diz esperar que o Governo Bolsonaro "entenda os alertas
internacionais" feitos não só por ele, "mas também pelo relator de
liberdade de expressão e de opinião da ONU, a alta comissária para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet,
Repórteres Sem Fronteiras, o Comitê de Proteção aos Jornalistas", entre
outros. "Os sinais de alerta foram dados. Obviamente ocorreram alguns
freios ou algumas decisões judiciais corretas", celebra.
Força da sociedade civil e Carlos Bolsonaro
Para
o relator especial da OEA, são movimentos organizados da sociedade
civil brasileira, como o ato em defesa da liberdade de imprensa
realizado nesta segunda-feira na USP, "que geram esperança de que a democracia
e as liberdades serão preservadas". "As crises às vezes são
oportunidades de que nos lembremos de que as liberdades não são
garantias dadas de presente, mas sim conquistas que a sociedade tem que
defender. Estou vendo uma sociedade vibrante que está reagindo",
afirmou.
No ato na Faculdade de Direito estiveram figuras
públicas como o ex-candidato petista Fernando Haddad, os deputados
federais Sâmia Bonfim e Ivan Valente (PSOL) e o ex-chanceler do Governo
tucano Celso Laffer. José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça do Governo
de Fernando Henrique Cardoso e atual presidente da recém criada
Comissão Arns, de defesa dos direitos humanos, não pode comparecer e
enviou uma mensagem que foi lida durante o ato. No palco, jornalistas e
personalidades se revezaram com mensagens semelhantes à de Lanza. O
jornalista Juca Kfouri saudou "o renascer na sociedade civil brasileira". A jornalista Carla Jiménez, diretora do EL PAÍS Brasil,
afirmou que o encontro era um pequeno "ecossistema que precisa se mover
e ficar firme, como ocorreu no fim de semana" no Rio durante a bienal.
"Que sejamos essa caixa de ressonância, porque isso vai continuar, e vai
continuar por muito tempo. Não temos o direito de capitular", disse.
"Vim
aqui para celebrar a divergência de opinião", discursou o jornalista
Reinaldo Azevedo, identificado com a direita brasileira. Glenn
Greenwald, fundador do portal The Intercept, chamou a atenção
para o papel do jornalismo em também denunciar a corrupção na Justiça.
"Há corrupção no executivo, há corrupção no parlamento, mas há também
corrupção no Judiciário, na Lava Jato e no Ministério Público. E isso só
pode ser revelado graças a uma imprensa livre", afirmou. "A
Constituição de 88 nasceu porque esse país não queria mais censura, não
queria mais tortura e não queria mais ditadura", discursou, por sua vez,
o jornalista Eugênio Bucci. "O presidente atenta contra a Constituição
todos os dias, quando ele faz apologia da tortura e da morte, quando
elogia o torturador Carlos Alberto Ustra", acrescentou.
Enquanto o ato se desenrolava, o mundo político repercutia as declarações do filho do presidente Carlos Bolsonaro
(PSL-RJ). O vereador carioca usou sua conta no Twitter para dizer que
as "vias democráticas" travam as mudanças no país que almeja. "Por vias
democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na
velocidade que almejamos... e se isso acontecer. Só vejo todo dia a roda
girando em torno do próprio eixo e os que sempre nos dominaram
continuam nos dominando de jeitos diferentes!", escreveu o filho do
presidente, próximo do mandatário e influente na estratégia digital do
pai do Planalto. A mensagem fez recordar outro filho do mandatário,
deputado Eduardo Bolsonaro,
criticado por dizer, durante a campanha eleitoral, que só bastava "um
cabo e um soldado" para fechar o Supremo Tribunal Federal. Na época, diante do rejeição contundente, inclusive do Supremo, Bolsonaro disse: “Eu já adverti o garoto."
O governo Bolsonaro vem desfazendo absurdos que nos meteram no limbo e tenta nos recolocar nos eixos. O enredo contado por grupelhos e os motivos cada vez mais claro$ lamentavelmente são rapidamente absorvidos por inocentes. Os avanços ignorados e os malfeitores esquecidos.— Carlos Bolsonaro (@CarlosBolsonaro) September 9, 2019
conteúdo
Felipe Betim
São Paulo
El País
Nenhum comentário:
Postar um comentário