A política está se tornando um campo de disputas morais. Cresce a censura contra livros, histórias em quadrinhos, exposições de arte e peças teatrais. O controle da formação moral das crianças é um dos focos prioritários, como na censura às palestras do ciclo Aventuras do Pensamento, pela Caixa Cultural, voltado para um público de 10 a 15 anos. Peças que abordam, mesmo indiretamente, a questão de gênero viram alvo de vetos governamentais. O presidente responde justificando sua missão de “preservar os valores cristãos, tratar com respeito a nossa juventude, reconhecer a família como uma unidade que tem que ser saudável para o bem de todos”.
Ainda que diga, retoricamente, não se tratar de censura, assume, na prática, a censura. E dobra a aposta. O que lhe dá essa petulância toda é a certeza do apoio de parte considerável da população.
Nossa primeira reação, diante do ataque escancarado à liberdade de expressão, é defender o Estado laico, denunciando o papel das igrejas que legitimam e disseminam a agenda conservadora. Essa explicação ofusca, contudo, a peculiaridade de nosso momento político. Milhões de pessoas endossam essa agenda, logo precisamos olhar de perto seus motivos. A defesa obstinada dos valores familiares está no centro da disputa política em nossos dias. Mas não se trata de legitimar qualquer família. Muito pelo contrário, os novos arranjos familiares — com dois pais ou duas mães, com mães sozinhas — tornam-se alvo de ataques. A missão, representada nas palavras de Bolsonaro, é afirmar a família patriarcal como única digna de reconhecimento. Sem ela, a ordem do mundo fica ameaçada. Prova disso é o vídeo recente de Edir Macedo, pregando para que mulheres não estudem e se submetam aos maridos, a fim de garantir o único modelo familiar que funciona: aquele no qual é o homem quem manda.
O retrocesso aconteceu muito rápido. Há pouquíssimo tempo
estávamos passando leis por direitos de casais homoafetivos, estávamos
ostentando orgulhosamente, em nossos carros, adesivos com arranjos
familiares diversos. Parece que o jogo virou, e os conservadores hoje
são mais fortes. Por quê?
A insuficiência de políticas distributivas, a baixa qualidade dos serviços públicos, a falta de garantias coletivas, o desmonte do Estado de bem-estar social
deixam grande parte da população desassistida. Só a família acolhe
essas pessoas. A igreja também, mas muitas delas, justamente as que mais
crescem, reforçam os valores das famílias.
Ao redor do mundo, o caminho da austeridade, com consequente
encolhimento das instituições do bem-estar coletivo, produziu uma
segunda camada de privatização: o avanço dos valores familiares
tradicionais. O tema é abordado por autoras como Wendy Brown
ou Melinda Cooper, em livros ainda não traduzidos no Brasil.
Aproximando a questão econômica da mudança cultural, Brown associa o
crescimento do conservadorismo à dissolução de princípios fundamentais
da vida social: igualdade, cidadania, autonomia, liberdade de expressão,
tolerância, pluralismo ou secularismo. Esses valores costumavam
sustentar a vida em sociedade, mas, claro, quando eram capazes de
garantir condições materiais para uma existência minimamente digna.
A ruptura desse pacto transforma o papel das instituições,
principalmente da escola. Um dos objetivos principais, da agenda
familiar patriarcal, é proteger as crianças de qualquer exposição a
valores que reforcem sua autonomia. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, chegou a dizer que o nome de seu ministério está errado, pois “educação” é assunto da família. A escola deve dedicar-se ao “ensino”: ensinar a ler ou treinar para um ofício.
Essa visão representa uma mudança radical no papel da
escola. A educação ética, voltada para o exercício da cidadania e para o
aprendizado de valores que regem a vida em sociedade, sempre foi
atribuição da escola — ao menos nas democracias.
Ultimamente, vinham se tornando cada vez mais presentes temas como:
respeito à diversidade étnica e sexual, normalização de opções que não
se enquadram no modelo heteronormativo, combate ao machismo, ao racismo, à homo e à transfobia.
Está em curso uma insurgência conservadora contra
tudo isso, tendo as famílias tradicionais como militantes ativos.
Iniciativas como o movimento Escola sem Partido
incorporam a missão de reivindicar a educação moral exclusivamente para
as famílias. Acusações de “doutrinação”, usadas contra as universidades
ou a mídia, fazem parte da mesma cruzada. O conhecimento e a reflexão,
neste projeto, devem ser reduzidos a conteúdos estritamente técnicos,
tidos como neutros. Um sentimento de afronta e de hostilização move uma
parte considerável da sociedade a reagir contra os valores
emancipatórios que costumavam ser associados ao pensamento, à cultura, à
arte ou à ciência.
Claro que algumas igrejas têm enorme responsabilidade na disputa moral que está em curso.
Mas adquirem tanta capilaridade porque respondem a angústias e
ansiedades legítimas. A ideia de que o papel do Estado é proteger os
cidadãos está cada vez mais distante do dia a dia das pessoas. Sem
nenhuma instituição que os acolha, jovens sem perspectiva, idosos
desassistidos, desempregados, desalentados ou mães solteiras não têm
mais ninguém a quem recorrer. Só as famílias e as igrejas oferecem
alguma proteção. É o caso concreto dos aposentados no Brasil, avós que
acolhem todo mundo em momentos de crise; jovens que resolvem casar para
dividir o aluguel; filhos que demoram mais para sair de casa, ou nunca
conseguem. Quanto mais restrita a proteção social, mais relevante será a
família tradicional e mais contumaz sua ingerência sobre a vida
daqueles que protege. Garantias sociais, ao longo da história, serviram
como instrumento eficaz para a libertação de mulheres e homossexuais
do jugo patriarcal. Aqui mesmo, políticas públicas foram criadas
assumindo mulheres como detentoras de direitos, justamente pelo papel
emancipatório dessa escolha — é o caso do Bolsa Família.
Interromper a marcha do conservadorismo é uma tarefa bem
mais árdua do que combater o poder das igrejas. Precisamos criar um
mundo onde as igrejas não encontrem tanto espaço vazio para extrapolar o
âmbito da fé, dominando a política e a vida pública. Precisamos de
estruturas acolhedoras para quem quer se desgarrar da família
tradicional, constituindo outros arranjos coletivos. O combate feroz às desigualdades é um primeiro guia. Mas proporcionar convivência e pertencimento também é importante na sutura de nosso tecido social esfacelado.
Não adianta tentar esconder que a esquerda defende o ensino
de valores pautados pelo pluralismo e pelo respeito à diversidade
sexual. E que essa é também uma missão da escola. Governos de esquerda nunca distribuíram mamadeira de piroca.
Mas buscaram ensinar mulheres, homo e transexuais a exercerem seus
direitos; ensinaram o respeito a opções sexuais fora dos padrões
heteronormativos. Isso deve ser motivo de orgulho. Esse é o mundo que
queremos criar. Se o pai não quiser vir, teremos seus filhos e filhas ao
nosso lado — algumas mães também virão. Só precisamos conquistar a
confiança dessas pessoas, que acreditem em nossos projetos para
libertá-los do jugo econômico da família patriarcal. Quais são eles?
conteúdo
Tatiana Roque
El País
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