A iniciativa do presidente Jair Bolsonaro de criar o seu partido de extrema direita deve aprofundar o fosso da articulação política de seu Governo com o Congresso Nacional. Uma primeira prova sobre o impacto do anúncio dele de abandonar o PSL, formalizado nesta terça-feira, e tentar fundar a Aliança pelo Brasil deve ocorrer ainda nesta semana quando a Câmara dos Deputados planeja votar a medida provisória 890, que trata do programa Médicos Pelo Brasil. A MP caduca no próximo dia 28 e, se não for aprovada pelas duas Casas até lá, corre-se o risco de deixar quase 10 milhões de pessoas sem assistência médica.
Esses cidadãos seriam atendidos por cerca de 3.000 médicos que precisam de uma nova lei para terem seus contratos efetivados.
Ao se desfiliar do PSL,
Bolsonaro se tornou o primeiro dos 38 presidentes em 130 anos de
República brasileira a trocar de legenda enquanto está no poder. O PSL
tem hoje a segunda maior bancada da Câmara, com 53 deputados e, até
então, tem sido a mais fiel ao Governo, ao votar favorável em 98% das
propostas que chegam do Palácio do Planalto. Dessa bancada, entre 25 e
30 parlamentares devem acompanhar Bolsonaro na nova legenda na próxima
janela de transferência partidária, em março de 2020. Ou seja, o
presidente não conseguiu convencer todos os deputados que se elegeram
por terem vinculado suas imagens à dele.
“É um vexame um
presidente só conseguir levar metade de um partido. Eles se elegeram de
fato pelo prestígio do Bolsonaro e nem isso o presidente conseguiu
manter”, avaliou Carlos Ranulfo Félix de Melo, professor titular do
Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Com um potencial novo partido, Bolsonaro também demonstra que
não pretende investir no presidencialismo de coalizão, que imperou no
país em todos os Governos após a redemocratização. “Independentemente de
ser PSL ou Aliança pelo Brasil. Ele se recusou a fazer qualquer acordo
ou coalizão. A tendência é que siga assim até que um novo presidente
assuma o poder”, opinou o especialista da UFMG.
Na
avaliação desse professor, o Governo está refém do Congresso e não
consegue emplacar seus projetos sem que os parlamentares o modifiquem
como bem entenderem. “Só se vota e se aprova o que o Rodrigo Maia [presidente da Câmara] quiser. Isso porque o Governo não articula. Não conversa com ninguém”, afirmou Melo.
Uma legenda de extrema direita
Com
o gesto de desfiliar em plena Presidência, Bolsonaro acaba repetindo um
ato tomado por Hugo Chávez (1954-2013) em 2006, quando o ex-presidente venezuelano
também iniciou um processo de criação de seu próprio partido, o PSUV
(Partido Socialista Unificado da Venezuela), já no poder. Entre as
semelhanças no discurso dos dois, está a defesa da "refundação" do
sistema político, a aliança com os militares e o desprezo pela oposição
como interlocutora válida. Além do posicionamento ideológico antípoda,
outra diferença é que, na época da criação do PSUV, Chávez tinha maioria
congressual. Algo que Bolsonaro nunca buscou ter.
Bandido não tem cor. Bandido é bandido!— Daniel Silveira (@danielPMERJ) November 19, 2019
Essa história de que policiais matam negros por serem negros é uma mentira criminosa.
Distorcer números, dados e reescrever a história com o intuito de sustentar narrativas falaciosas, é uma especialidade dessa matula. pic.twitter.com/24NtT1ohEN
Uma outra característica da legenda que Bolsonaro e seus
apoiadores planejam criar é seu posicionamento na extrema direita. Em
caso de sucesso —para começar, terão de conseguir 500.000 assinaturas
até o ano que vem— , será a primeira vez que o país terá um partido com
representatividade nesse campo ideológico. “Antes só tivemos o
integralismo, mas era residual, sem expressão política”, explicou o
professor Melo, citando o movimento do começo do século 20.
Um
manifesto divulgado pelos bolsonaristas e que deve compor parte do
estatuto de criação da sigla, mostra que a Aliança pelo Brasil terá um
caráter nacionalista, preocupado com as pautas de costumes e centrada na
figura do presidente. No documento, há a citação de que os “aliados”,
como os filiados querem ser chamados, “almejam livrar o país dos
larápios, dos ‘espertos’, dos demagogos e dos traidores que enganam os
pobres e os ignorantes que eles mesmo mantêm, para se fartar”. Há
citações à família, aos religiosos, aos militares e uma referência ao
slogan de Bolsonaro na campanha eleitoral de 2018: “Brasil acima de
tudo. Deus acima de todos”.
A julgar pelos bolsonaristas fiéis
que já anunciaram adesão, a nova sigla trilhará o caminho do líder, de
não se furtar a fazer declarações ofensivas a minorias para se
diferenciar no tabuleiro político e conseguir coesão da base. Nesta
terça-feira, o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) subiu à tribuna
da Câmara para contestar dados de que os negros morrem mais nas mãos da
polícia no Brasil. Silveira, inglório por quebrar uma placa em
homenagem da vereadora assassinada Marielle Franco, já confirmou que
migra para o Aliança.
Apesar da empolgação dos apoiadores
do presidente, que marcaram a convenção nacional para esta
quinta-feira, haverá dificuldades para a aprovação da legenda. Um dos
partidos que conseguiu ser criado em tempo recorde foi o PSD, que levou
pouco mais de dois anos para reunir 500.000 assinaturas em nove unidades
da federação. Se quiserem, de fato, participar das eleições municipais
de 2020, os bolsonaristas têm pouco mais de quatro meses para concluir
todos os trâmites burocráticos. O prazo limite para disputar o pleito é
abril do ano que vem.
Caso não consigam fundar o partido,
o plano B seria uma migração massiva para alguma legenda de direita até
que o Aliança seja criado, na expectativa de disputarem a eleição de
2022. Para tentar agilizar a criação de seu partido, Bolsonaro contratou
o mesmo advogado que atuou na fundação do PSD, o ex-ministro do TSE Admar Gonzaga.
conteúdo
Afonso Benites
Brasília
El País
Nenhum comentário:
Postar um comentário