O presidente Jair Bolsonaro ironizou a decisão de Evo Morales de deixar o país andino e se exilar no México, um dia depois de o boliviano renunciar ao poder: "Lá a esquerda tomou conta de novo. Tenho um bom país para ele: Cuba", afirmou o presidente brasileira, em referência ao Governo mexicano de Andrés Manuel López Obrador em frente ao Palácio do Alvorada. No domingo, o presidente brasileiro já tinha escrito uma mensagem irônica nas redes ao usar a expressão "grande dia", seguida de um sinal de joinha, pouco depois do anúncio de renúncia de Morales, que deixou o cargo por pressão do Exército e após dias de protestos intensos.
O vice-presidente boliviano e os chefes das duas casas legislativas renunciaram também, deixando a sucessão presidencial em um limbo.
Apesar da comemoração da queda de um dos governos da ala da
esquerda —alvo constante de ataques de Bolsonaro— para as redes e as as
câmeras, nos bastidores a informação é que o tema preocupa o Planalto,
já que a crise que mergulhou a Bolívia em um vazio político pode criar
tensão na fronteira com o Brasil, fazer escalar o clima de instabilidade
na região e, dependendo da duração e do desfecho, afetar a estratégica relação comercial entre os dois países,
cujo principal eixo é um acordo de importação de gás pelo lado
brasileiro (83% do gás que o Brasil importa vem da Bolívia, num cenário
que os campos brasileiros só produzem pouco menos de 70% do que o país
precisa). Por tudo isso, o melhor é que a situação se estabilize o
quanto antes, segundo interlocutores.
Em entrevista ao jornal O Globo,
Bolsonaro afirmou não considerar que Morales tenha sofrido um golpe.
Para ele, as denúncias de fraudes nas eleições culminaram na renúncia do
boliviano. "A palavra golpe é usada muito quando a esquerda perde,
né?", disse. O presidente brasileiro explicou ainda que o sistema de
votação atual "não serve" e que a Bolívia é um sinal para que o Brasil
adote um sistema seguro. Em um tom um pouco mais cauteloso, Bolsonaro
ressaltou que "não é bom acontecer esse tipo de movimento". "Eu sei que
lá foi contra a esquerda, mas a gente não quer nem contra a esquerda nem
contra a direita. A gente quer que, acabou, tem dúvida, vai lá e conta,
abre a urna lá, o voto impresso e conta", disse.
Reunião na OEA e pragmatismo
Por
enquanto, a tônica do Governo sobre a crise instaurada no país andino
parece ser essa: observação atenta, mas sem maior envolvimento, à
diferença de crises anteriores, quando o país era chamado a mediar o
conflito diretamente. O chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, disse que o
Brasil apoiará uma "transição democrática e constitucional" e que a
"narrativa de golpe só serve para incitar violência". O Itamaraty também
afirmou que já tinha solicitado uma reunião antes mesmo da renúncia de
Morales com a Organização dos Estados Americanos (OEA) para examinar as
conclusões da auditoria realizada pelo órgão a respeito das eleições.
Outros países, como a Colômbia do Governo conservador de Ivan Duque, se
somaram ao pedido de uma reunião emergencial após a renúncia do
boliviano. O encontro deve acontecer na sede em Washington nesta
terça-feira.
"A posição do presidente é clara, mas o que
importa do ponto vista político-diplomático são as ações do Brasil. E
acho que o país não vai tomar nenhuma outra ação além de apoiar o
relatório da OEA e pedir novas eleições", explica Rubens Barbosa,
ex-embaixador brasileiro em Washington. Para Barbosa, o país deve se
preocupar quanto a possíveis distúrbios na fronteira.
Em
um dos limites dos dois países, em Corumbá, a 415 km de Campo Grande, a
passagem está fechada há mais de 20 dias. Uma greve geral de
manifestantes contrários ao ex-presidente é mantida no local. "Como é um
país com uma fronteira importante e grande é sempre complicado. Acho
que estão preocupados, mas a situação ainda não saiu do controle", diz
Barbosa.
Outro receio quanto à crise instaurada na
Bolívia é que ela afete de alguma maneira a relação comercial entre os
dois países, principalmente no mercado de gás natural. Atualmente o
Governo brasileiro tenta renegociar o contrato de importação do gás
boliviano, por meio do Gasoduto Brasil-Bolívia, para diminuir o preço do
combustível. Em tese, o contrato atual, que obriga a Petrobras a
comprar uma cota mínima de produção boliviana expira em dezembro. Apesar
de o Brasil ter diminuído sua fonte de dependência do produto do
vizinho, ainda assim é de lá que vem mais de 80% do importante em gás
natural. "Se a Bolívia parar de fornecer gás por um dia a gente para a
Av. Paulista. A nossa indústria depende profundamente do gás natural que
vem de lá", explica o professor de Política Internacional da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dawisson Lopes.
Para além das implicações econômicas, Lopes ressalta que o momento que atravessa o país andino é muito relevante para os rumos da política da América Latina.
"Há dois campos medindo força na região. Antes da renúncia de Morales,
os movimentos pareciam indicar que o campo da esquerda estava
conseguindo recuperar terreno perdido e me refiro a Alberto Fernandez,
na Argentina, e a libertação do ex-presidente Lula no Brasil. Tinha um
clima favorável a esse campo da esquerda, mas essa onda foi interrompida
no domingo", explica.
A situação da Bolívia virou uma
espécie de totem do que é a situação institucional da América Latina, na
opinião de Dawisson. "Quando as pessoas começam a ir frequentemente
para rua é sinal que há um descolamento entre sociedade e política
institucional, economia e política institucional, e eu acho que a
questão institucional voltou para a pauta".
Apesar de
formar parte do grupo de políticos de esquerda na América Latina,
fortemente criticado pelo clã bolsonarista, o ex-mandatário boliviano
mantinha uma boa relação pragmática com o presidente brasileiro e, em
janeiro, compareceu à posse de Bolsonaro em Brasília. Antes, o boliviano já havia se aproximado de Michel Temer,
mesmo tendo feito críticas ao impeachment. "Evo Morales é famoso
internacionalmente não apenas porque ficou 13 anos no poder, mas porque
fez diplomacia presidencial como nenhum outro da região. Ele se
encontrava com líderes tão diferentes como Bolsonaro e Maduro. Sua
capacidade diplomática era invejável", ressalta Dawisson.
A
relação com o presidente brasileiro só azedou durante a crise das
queimadas na Amazônia, quando Bolsonaro atacou o país andino e afirmou
que era na Bolívia, e não no Brasil, onde estavam se espalhando os
incêndios florestais.
Na avaliação do professor da UFMG,
ainda é cedo para fazer prognósticos sobre o futuro da Bolívia e sua
relação com o Brasil. Mas sua maior aposta é de que a direita irá
assumir o poder no pós-Evo Morales. "Algum candidato que tenha a
simpatia das forças armadas deve assumir e Bolsonaro vai apoiar esse
candidato", sugere.
conteúdo
Heloísa Mendonça
São Paulo
El País
Nenhum comentário:
Postar um comentário