Há muitos anos, Josefa Severina de Souza, de 58, não sabe mais qual é a sensação de sair de férias do trabalho. Não consegue achar na memória nem qual foi a última vez que conseguiu tirar alguns míseros dias de descanso. Mãe de oito filhos, dos quais quatro ainda moram com ela, a rotina dos últimos 25 anos de Josefa tem sido de trabalho diário nas ruas de São Paulo como vendedora ambulante de segunda a sábado.
Atualmente trabalha no bairro de Pinheiros, onde durante todo o dia transitam centenas de pessoas e potenciais clientes. No domingo, se dedica às tarefas domésticas. O marido, de 62 anos, desempregado há mais de quatro anos, faz alguns bicos como pedreiro, mas é a renda dela a principal fonte de sustento de seis pessoas. Somando os cerca de 1.450 reais que ganha com as vendas mais o salário fixo de 1.000 reais que um dos filhos recebe trabalhando em um supermercado, cada membro da família sobrevive atualmente com uma renda per capita mensal de 408 reais, menos do que meio salário mínimo. "Se a gente não trabalha, não sobrevive, né?", explica a vendedora.
A família de Josefa faz parte dos 50% mais pobres da
população, quase 104 milhões de brasileiros, que em 2018 vivia, em
média, com apenas 413 reais per capita, segundo a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua)
publicada em outubro. No mesmo ano, 5% da população, ou 10,4 milhões de
pessoas no Brasil, sobreviviam com 51 reais mensais. O levantamento
revelou ainda que a desigualdade se agravou no país. A renda domiciliar
per capita desses 5% mais pobres caiu 3,8% de 2017 para 2018, enquanto a
renda da fatia mais rica (1% da população) cresceu 8,2%.
Na avaliação de Maria Lúcia Vieira, gerente da Pnad Contínua, os ricos ficaram mais ricos e os pobres mais pobres,
porque a renda total das famílias vem majoritariamente do trabalho.
"Com a recessão, o mercado de trabalho também entrou em crise, e o
desemprego aumentou [hoje atinge 12,6 milhões de brasileiros]. O que
afeta muito mais os mais pobres, já que o estrato mais rico tem
geralmente outras fontes de renda além do emprego, como, por exemplo,
dinheiro proveniente de aluguéis, pensões", explica. Ainda que nos
últimos dois anos a população ocupada tenha voltado a crescer, os
empregos criados foram, principalmente, os informais. "Os postos que
estão surgindo são pouco remunerados e de baixa qualificação", diz
Vieira.
Informalidade bate recorde
Entre julho e setembro deste ano, a taxa de informalidade da
população ocupada bateu recorde da série iniciada em 2012, chegando a
41,4% dos trabalhadores. Ou seja, a cada 10 trabalhadores, seis têm
ocupação precarizada. Segundo a gerente, o número de brasileiros que
trabalham como ambulantes informais vendendo alimentos foi um dos que
mais aumentou nos últimos tempos. Entre o segundo trimestre de 2015 e o
segundo trimestre de 2019, o número desses ambulantes cresceu 510%
subindo de 78,4 mil para 478,3 mil pessoas.
Um dos filhos
de Josefa, que já saiu de casa, faz parte desse grupo de novos
ambulantes. Após ser demitido de um trabalho com carteira assinada,
resolveu seguir os passos da mãe e apostar nas vendas na rua. Fabiano
Manuel de Souza, de 26 anos, ajuda a mãe a transportar no ônibus a
mercadoria e depois segue para outro ponto também em Pinheiros, na zona
oeste da cidade. "Não é um trabalho fácil, e as vendas dependem muito de
cada dia. Faça chuva ou faça sol a gente vai pra rua. Agora no calor é
mais fácil ganhar com água, mas está tudo meio parado. Não sei se as
coisas vão melhorar, acho que esse Governo novo é pior. Eu preferia o
Lula, fui até em manifestação contra o Bolsonaro no Largo da Batata para
protestar, mas também para aproveitar as vendas", conta.
Apesar
dos tempos de economia fraca e pouco dinheiro no bolso, Josefa está
mais tranquila nos últimos meses. Neste ano, conseguiu, finalmente, uma
autorização na prefeitura da capital paulista para legalizar a sua
atividade e o carrinho que utiliza na calçada para expor os produtos que
vende: água, refrigerantes, salgadinhos e balas. O local escolhido por
ela é estratégico, fica em frente a um ponto de ônibus, a poucos metros
do metrô Faria Lima. "Agora estou na paz, despreocupada. Antes era uma
corrida de gato e rato entre eu e os fiscais. Cheguei a perder 13 vezes a
minha mercadoria aqui, a polícia levou tudo. Eles corriam atrás de mim
como se eu fosse um ladrão, vivia tensa. Eu estava apenas trabalhando.
Eu nem tinha o carrinho, vivia com sacolas para sair correndo", conta ao
lado da filha Kelly, de 20 anos, que está cursando faculdade de
educação física, mas ajuda a mãe nas horas vagas.

Para
regularizar sua atividade, Josefa entrou no programa "Tô Legal!" da
Prefeitura de São Paulo e paga um imposto trimestral de quase 700 reais.
Somou-se aos novos gastos um estacionamento para seu carrinho de 150
reais mensais e mais 10 reais diários para que outro vendedor da região a
ajude a levá-lo à garagem. Para que o dia seja lucrativo, ela precisa
trabalhar das 10/11h da manhã até 21h/22h da noite, de segunda a sábado.
O
dia de Josefa começa, no entanto, muito mais cedo, e termina muito mais
tarde. A vendedora acorda 6h da manhã para preparar o café da manhã dos
dois filhos, de 18 e 16 anos, que vão para a escola e para organizar a
marmita do filho que trabalha. Todos moram em uma casa simples de três
quartos. Como vive no bairro Jardim do Colégio, em Embu das Artes, na
Grande São Paulo, ela leva quase duas horas para chegar ao local de
trabalho e precisa pegar dois ônibus para percorrer um trajeto de cerca
de 25 km. Na volta, acaba chegando em casa depois da meia-noite. É
quando Josefa começa a preparar o jantar e o almoço do dia seguinte dos
filhos e marido. "Acabo dormindo 3h da manhã. Mas o jantar é a única
refeição forte do dia que eu faço. Não tenho onde aquecer a comida lá no
meu carrinho e se compro na rua gasto 15 reais. Não posso, preciso
economizar para os remédios. Por isso, nem almoço", explica.
Há
três anos, a vendedora trata algumas feridas na perna ocasionadas pela
má circulação sanguínea, chamadas úlceras varicosas. O tipo de lesão
acomete, muitas vezes, pessoas que passam muito tempo em pé. "Preciso
passar uma pomada cara, de 52 reais, que compro toda semana, e enfaixar
as pernas. Nem passo mais no posto de saúde porque eles não têm nada. O
médico diz que preciso ficar de repouso uns três meses, mas cada dia que
não trabalho o dinheiro no fim do mês diminui, não dá".
Se
pudesse escolher, Josefa optaria hoje por ter um emprego com carteira
assinada, onde pudesse usufruir dos direitos trabalhistas, como o de
tirar uma licença médica remunerada. "Mas, infelizmente, eu já não tenho
mais idade. Ninguém vai me contratar com 58 anos", lamenta a vendedora
que chegou a trabalhar 13 anos registrada em diferentes empregos antes
de virar ambulante.
Ela veio da Paraíba para São Paulo
aos 13 anos e já conseguiu, quando chegou, um posto em uma fábrica.
"Como contribui esses anos, agora estou pagando o INSS para completar os
15 anos e tentar aposentar por idade. Ainda tenho que ver o que essa
reforma da Previdência vai mudar nos meus planos, mas a aposentadoria
vai ajudar muito, porque não vou poder trabalhar para sempre na rua",
explica. O marido também deve conseguir se aposentar por idade daqui a 3
anos.
Enquanto as aposentadorias não chegam, Josefa tem
um 'plano B' para melhorar de vida. Está há alguns anos construindo um
novo andar na casa, com quartos separados para cada filho, para onde
pretende se mudar com toda a família. "Aí vamos alugar essa parte de
baixo e ganhar um dinheiro extra. A obra a gente começou com um acerto
que meu marido ganhou quando foi demitido. Mas não conseguimos terminar e
está difícil sobrar dinheiro, vivemos apertados", explica. O dinheiro
anda tão escasso que, às vezes, ela pede para um primo um empréstimo.
Ele empresta um vale alimentação para que ela compre novas mercadorias e
ela só paga dez dias depois. Josefa acredita, no entanto, que com o
dinheiro que fizer nas vendas no Carnaval de 2020 talvez consiga poupar
um pouco. "É a melhor época. Acho que no ano que vem conseguimos
terminar a obra e mudar lá pra cima. Acho que vai melhorar muito", diz
sorrindo.
conteúdo
Heloísa Mendonça
São Paulo
El País
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