Em conflito aberto com o Supremo Tribunal Federal e diante de inquéritos que acossam a ele e parte de seus mais fieis militantes, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) invocou por meio de suas redes sociais uma “intervenção militar pontual”, ou seja, um golpe contra outros poderes constituídos. Na tarde desta quinta-feira, quando em suas contas no Twitter e no Facebook, o mandatário compartilhou uma entrevista concedida pelo advogado constitucionalista Ives Gandra Martins, na qual ele defendeu que o artigo 142 da Constituição permite uma intervenção das Forças Armadas em outros poderes para a garantia da lei e da ordem. “Live com Ives Gandra: A politização no STF e a aplicação pontual da 142”, escreveu o presidente.
Nessa entrevista, o advogado disse que, em casos extremos, quando começasse a haver um choque entre poderes, os militares exerceriam um “poder moderador” e interviriam em outra instituição. “Caso contrário, o que teríamos seria um superpoder. Existe um poder máximo que é Supremo, o Judiciário, e existem poderes menores, subpoderes, que seriam o Legislativo e o Executivo.
E cada vez que houvesse um conflito, mesmo que parte do conflito fosse o poder Judiciário, seria o próprio poder Judiciário era quem decidiria em causa própria”.
O El País consultou dez juristas, três deles que preferiram
não ter seus nomes revelados pelos cargos que ocupam, e todos afirmaram,
unânimes, que não há a figura de “intervenção militar” que não seja um
golpe. Parte deles opina, inclusive, que o presidente, que já havia
participado de manifestações golpistas, incorreu no crime de incitar um
golpe de Estado.
Pela manhã, Bolsonaro, que usava uma
gravata azul com desenhos de pequenos fuzis enfileirados, já havia
demonstrado inconformismo com uma decisão de quarta-feira do ministro
Alexandre de Moraes, da Suprema Corte, no âmbito do polêmico inquérito das fake news. Era
uma ordem de apreensão de computadores, celulares e tablets de 29
bolsonaristas, além da quebra de sigilos bancário e fiscal de quatro
deles, parte da apuração sobre uma rede de disseminação de boatos contra
o STF. “Ontem foi o último dia. Eu peço a Deus que ilumine as poucas
pessoas que ousam se julgar melhor e mais poderosos que os outros que se
coloquem no seu devido lugar, que nós respeitamos”, disse. E seguiu
exaltado: “Não podemos falar em democracia sem um Judiciário
independente, sem um Legislativo independente, para que possam tomar
decisões não monocraticamente, por vezes, mas as questões que interessam
ao povo que tomem, de modo que seja ouvido o colegiado. Acabou, porra”.
Em
entrevista à rádio Bandeirantes, o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do
presidente, opinou na mesma linha. “Vou me valer de novo das palavras
de Ives Gandra Martins: o poder moderador para restabelecer a harmonia
entre os Poderes não é o STF, são as Forças Armadas (...) Eles
[militares] vêm, põem um pano quente, zeram o jogo e, depois, volta o
jogo democrático. É simplesmente isso”.
Todos os discursos ocorrem seis dias depois de o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno,
emitir uma nota à República para advertir das consequências
“imprevisíveis” para a “estabilidade nacional” caso o Supremo decidisse
requisitar o celular do presidente no curso de uma investigação contra o
presidente —há um pedido em análise na Procuradoria-Geral da República.
A nota foi endossada pelo Ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e
Silva, num inusual participação do chefe das Forças Armadas em questões
de política interna.
O presidente “conspira contra a democracia”
Para
Oscar Vilhena, professor da FGV Direito em São Paulo, Bolsonaro e seu
clã, ao invocar o artigo 142 da Carta, usam a “interpretação de quem
conspira contra a democracia e não é capaz de interpretar um artigo
dentro do quadro geral da Constituição”. “Trata-se de uma interpretação
enviesada de que seriam as Forças Armadas, e não o Supremo, que têm a
última palavra sobre a defesa da Constituição”, diz Vilhena.
“Ele
está claramente incitando golpe, ele e o filho [Eduardo]”, disse o
advogado especializado em direito público Marco Aurélio de Carvalho. A
mesma opinião tem Cezar Britto, ex-presidente da Ordem dos Advogados do
Brasil e membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz. “Em nenhuma
hipótese as Forças Armadas podem atuar a pedido dos poderes. Elas podem
atuar para garantir a democracia, mas nunca contra a democracia”.
O
advogado constitucionalista Guilherme Amorim Campos da Silva concorda
que “não existe intervenção militar constitucional, como tem pregado o
presidente”. Ele acredita que o mandatário está incorrendo em crime de
responsabilidade ao quebrar o juramento de defender a Constituição. “As
Forças Armadas entram em ação a pedido de algum dos poderes
constituídos, para garantir a institucionalidade do país, e não para
atuar como força autônoma ou soberana sobre os demais”.
Na
opinião do criminalista José Carlos Abissamra Filho, diretor do
Instituto em Defesa do Direito de Defesa, o presidente tem ficado
sozinho politicamente e vem tentando se vincular à instituições que
gozam de prestígio social, como Polícia Federal e Forças Armadas. “Ele
vem pedindo esse apoio das Forças Armadas há algumas semanas já. Essa é
mais uma tentativa. Está esperando para ver se as Forças Armadas vão
dar. Eu não vejo clima para que isso ocorra”.
O
constitucionalista Erick Pereira segue na mesma linha. Para ele,
Bolsonaro faz um discurso “intimidador, mas inexequível”. “Não tem
espaço constitucional para isso. Apenas se for ato de violência
ditatorial e este não precisa da Constituição”. Outro especialista em
direito público, Cristiano Vilela diz que o presidente tem andado no
limite da incitação a um golpe. “Ele tem feito isso regularmente. Tem
dado declarações que deixam a entender, mas sem dizer literalmente”.
Supremo e promessa a Aras
A
aposta de Bolsonaro na tensão máxima com o Supremo acontece em meio à
expectativa de que o plenário da Corte julgue, na próxima semana, a
legalidade do inquérito das fake news, instaurado pelo próprio
tribunal e objeto de debate no mundo jurídico. O relator do caso, Edson
Fachin, pediu celeridade nessa análise, já que o procurador-geral,
Augusto Aras, pediu a sua suspensão na quarta-feira. No ano passado,
Aras, indicado por Bolsonaro, entendia que a apuração era legítima,
agora, mudou de ideia.
Aras
é uma figura central no xadrez político-jurídico não só por causa desta
atuação no inquérito relatado por Moraes, mas também porque é ele quem
decidirá se Bolsonaro deve ou não ser denunciado por suposta
interferência na Polícia Federal. Depois de visitá-lo pessoalmente nesta
semana, Bolsonaro resolveu, nesta quinta, oferecer a ele, em público,
uma possível vaga no Supremo Tribunal Federal.
Em sua tradicional live de quinta-feira no Facebook, na qual abriu espaço para comentaristas da rádio Jovem Pan
lhe fazerem perguntas, Bolsonaro teceu elogios a Aras. O mandatário
disse que o procurador está fazendo um excelente trabalho,
principalmente na área econômica e que, se ele pudesse indicar um
terceiro ministro para o STF, o nome seria o de Aras. “Se aparecer uma
terceira vaga, espero que ninguém ali desapareça, o Augusto Aras entra
fortemente para essa vaga aí”. Até 2022 estão previstas duas
aposentadorias de ministros da Corte a de Celso de Mello em novembro
deste ano e a de Marco Aurélio Mello, em 2021.
Enquanto
atacava na redes sociais o Supremo por um lado, por outro, o presidente
recebia o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que tenta
atuar como bombeiro na crise. Em um relato feito a senadores, Alcolumbre
disse seu objetivo é pedir calma ao presidente enquanto o país enfrenta
a pandemia de coronavírus.
O gesto do presidente do
Senado é importante porque a estratégia de Bolsonaro parece ser por água
na fervura do conflito, mas sem perder a retaguarda no Congresso. Para
tanto, tem forjado aliança com o Centrão, grupo de partidos de direita
que aceitou apoiá-lo em troca de cargos e acesso a fundos públicos, e
com parte da cúpula do Parlamento. Com os acordos já feitos, em tese,
Bolsonaro consegue evitar o andamento de processos de impeachment ou de
denúncias criminais na Câmara – já que as legendas do Centrão somam
cerca de 200 deputados, 28 a mais do que o mínimo necessário para barrar
os intentos. “Atendemos, sim, alguns interesses desses partidos”, disse
o presidente sobre o Centrão nesta quinta-feira. Na campanha eleitoral,
era comum ouvir do então candidato e de seus aliados mais próximos a
afirmação de que o mal do Brasil estava nesse grupo partidário, que
representava “a velha política”.
Por causa desta
blindagem no Congresso, a oposição usa todas as armas jurídicas
disponíveis contra o Planalto e ministros diz que a expectativa é que
qualquer atitude contra o Governo venha ou do Supremo ou uma mobilização
da sociedade no segundo semestre. “A panela de pressão vai estourar
depois de julho, quando a economia degringolar por causa da pandemia”,
ponderou o líder da minoria na Câmara, José Guimarães (PT-CE).
conteúdo
Afonso Benites
Brasília
Carla Jiménez
São Paulo
El País
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