As descoordenadas medidas de isolamento adotadas pelos dirigentes brasileiros para fazer frente à covid-19, que contribuíram, segundo especialistas, para o aumento de casos no país, têm colocado em estado de alerta as autoridades dos países vizinhos, mais bem-sucedidos no combate à epidemia. Nesta semana, o presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, afirmou que o Brasil é “uma grande ameaça” à segurança sanitária de seu país devido aos altos índices de contágio pelo novo coronavírus. Os dois vizinhos compartilham 700 km de uma fronteira que está fechada desde meados de março. “Com o que o Brasil vive hoje, sequer passa pela nossa cabeça abrir a fronteira. O Brasil é, talvez, o lugar onde o coronavírus tenha maior expansão no mundo, e isso é uma grande ameaça ao nosso país.” O presidente argentino, Alberto Fernández, também externou a mesma preocupação e afirmou a uma rádio que o Brasil representa uma ameaça à América do Sul: “É um risco muito grande. Há uma grande quantidade de caminhões de carga que saem de São Paulo, que é um dos lugares mais infectados do Brasil. Por isso eu digo que não entendo quando se fala com tanta irresponsabilidade, não entendo”, afirmou.
Não foram apenas os territórios menos populosos, entretanto,
que conseguiram evitar a propagação acelerada da pandemia. A Argentina,
terceira nação com mais habitantes da América do Sul ―cerca de 45
milhões― é outro exemplo de país que conseguiu domar, desde cedo, o
avanço acelerado do vírus com duras medidas de isolamento social e hoje
possui 6.000 casos confirmados e 305 mortes. O país tem quase a mesma
população do Estado de São Paulo, que hoje soma 46.131 casos e 3.743
óbitos por coronavírus. Buenos Aires apresentou o primeiro caso da
covid-19 no dia 3 março, uma semana após o primeiro registro no Brasil,
em 25 de fevereiro. Foi na Argentina, no entanto, onde ocorreu a
primeira morte pela doença na região, no dia 7 de março. De lá pra cá,
os dois países tomaram caminhos bem diferentes. E que chegaram a
resultados igualmente distantes.
A Argentina começou a
quarentena obrigatória em 20 de março, quando continuava com apenas um
óbito em decorrência da covid-19. Dias antes, o presidente Fernández tinha decretado o fechamento total das fronteiras
e o confinamento de duas semanas para qualquer argentino que tivesse
regressado ao país vindo de algum dos focos de contágio. A estratégia,
desde o início, tem sido a de acatar as recomendações dos
epidemiologistas em detrimento dos setores econômicos que alertavam
sobre as consequências de uma paralisação total da atividade. Fernández
assumiu pessoalmente a guerra contra o coronavírus e sua popularidade
cresceu a medida que foi ficando cada vez mais evidente o êxito
sanitário das restrições.
Os casos positivos não
dispararam ainda no país e o sistema sanitário sofre muito pouco o
estresse da pandemia. A ocupação do leitos de UTI não atinge nem 50% e a
suspensão de cirurgias programadas mantêm os hospitais em uma operação
mínima, a espera do “pico da pandemia”. A Argentina tem duas províncias
sem casos de coronavírus e grandes regiões em que a taxa de contágio se
multiplica a cada 25 dias. O presidente anunciou, na sexta passada, mais
duas semanas de confinamento obrigatório, mas teve que começar a diferenciar as regras por regiões.
Buenos Aires e a região metropolitana, que acumulam mais de 80% de
casos positivos, seguem como está até agora. Nas províncias (estados) do
interior já começaram, nesta segunda-feira, um lento processo de
abertura, com a reativação controlada dos pequenos comércios e a
reabertura de 640 indústrias de setores distintos como o automotivo,
têxtil e do cigarro. Ainda restringe, no entanto, a construção, que move
grande quantidade de mão de obra. São medidas duras para um país que já
atravessa dois anos de recessão e está em pleno processo de negociação de uma dívida de 70 bilhões de dólares com
seus credores externos privados. Sem margem fiscal, depende da
impressão de dinheiro para financiar as ajudas milionárias que o Governo
de Fernández tem repartido entre os mais pobres e as pequenas e médias
empresas. O presidente por enquanto diz resistir à pressão empresarial.
“Não vão torcer meu braço, vou cuidar das pessoas antes de qualquer
coisa. Terminaremos esta discussão na qual querem que acreditemos que se
abrirmos a economia estaremos melhor. Tem gente tomada pela ansiedade
de abrir a economia, sem levar em conta a saúde”, disse.
As
decisões sobre o distanciamento social nos Estados brasileiros também
foram introduzidas relativamente cedo, mas o nível de rigidez destas
medidas foi bastante inferior ao da vizinha Argentina. Diferentemente de
Fernández, o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, tem negado a
dimensão da pandemia, que chama de neurose,
e defendido a volta das atividades para salvar a economia brasileira.
Um estudo da Rede de Pesquisa Solidária, que reúne pesquisadores de
diversas universidades e entidades do país, mostrou que parte
significativa dos Estados brasileiros começou a sinalizar ou a
flexibilizar as medidas de distanciamento social a partir da segunda
semana de abril, sem coordenação e sem dados confiáveis sobre número de
infectados ou o estágio de expansão da epidemia. Como resultado, a
adesão ao distanciamento social caiu, inclusive nos Estados que não flexibilizaram as medidas, como em São Paulo, que prolongou a quarentena até o fim do mês.
De acordo com a argentina Lorena Barberia, professora do
departamento de ciência política da Universidade de São Paulo (USP) e
uma das autoras do estudo, uma das principais metodologias utilizadas na
Argentina para o combate da pandemia foi a existência de um decreto de
quem deveria obrigatoriamente ficar em casa. “Não foi como no Brasil em
que houve apenas suspensão de escolas, do comércio e de algumas
atividades. Houve um lockdown no país inteiro e as pessoas
estavam proibidas de circular salvo determinadas exceções. Havia uma
restrição legal em que as autoridades podiam multar”, diz. A medida mais
restritiva é parte da explicação das discrepantes taxas de isolamento
que os dois países tinham, por exemplo, na quinta semana após o primeiro
caso da doença. Enquanto a média no Brasil era de 56%, a da Argentina
era de 77%. Barberia avalia ainda que a gestão da crise de coronavírus
foi coordenada de forma diferente nos dois países. “Enquanto no caso
argentino as medidas bem mais restritivas foram impostas pelo Governo
Federal que coordenou com seus governadores, no Brasil as medidas sobre
distanciamento social foram como nos Estados Unidos [atual epicentro da doença no mundo]: moderadas e implementadas com diferentes critérios”.
A
epidemiologista Ana Freitas Ribeiro, do Instituto Emílio Ribas,
concorda que a falta de uma fala unitária entre Governo federal,
estadual e municipal tem reduzido as taxas de isolamento no país. “Temos
linguagens e comunicações diferentes o tempo todo, o que prejudica
muito. Temos o presidente falando que não precisamos fazer isolamento e o
Governador de São Paulo falando não saia de casa. Isso [o descompasso]
reduz a taxa de isolamento e aumenta a curva”, explica Ribeiro. Na
avaliação da epidemiologista, o Brasil também enfrenta uma grande falta
de testes para a população, o que dificulta a contenção da doença. Ainda
segundo Ribeiro, o Brasil perdeu a oportunidade de ter barrado parte da
doença no início de março. “O período de contenção inicial foi muito
ruim. Se alguém vinha de Marrocos, por exemplo, onde tinha se encontrado
com chineses e apresentava um quadro gripal não era colocado como
suspeito. No sistema, o ministério da Saúde excluía o caso porque
Marrocos ainda não tinha casos de coronavírus. Deveríamos ter pecado
pelo excesso”.
Um relatório do Imperial College de Londres,
com foco específico no Brasil, recomenda ações mais duras para conter a
expansão da pandemia. “Mesmo que a epidemia brasileira ainda seja
relativamente nascente em escala nacional, nossos resultados sugerem que
mais ações serão necessárias para limitar sua expansão e evitar a
sobrecarga do sistema de saúde”, diz o texto publicado na sexta-feira
passada. Segundo a Confederação Nacional de Saúde (CNS), em ao menos
seis Estados já há saturação dos sistemas públicos e privados de
atendimento. O estudo também avalia que as medidas de isolamento social
no Brasil não foram suficientes para diminuir o contágio. Sem novas
regras de controle que reduzam a transmissão, o país encara a
perspectiva de uma epidemia que continuará a crescer exponencialmente,
de acordo com o cientistas.
conteúdo
Heloísa Mendonça
São Paulo
Federico Rivas Molina
Buenos Aires
El País
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