"O pico da doença [da covid-19] já passou quando a gente analisa a classe média, classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela, o que acaba dificultando o processo todo.” A fala de Guilherme Benchimol, presidente da corretora XP, uma importante peça no mercado financeiro brasileiro — e um dos executivos mais engajados no movimento Não Demita, incentivando empresas a manter suas equipes durante a pandemia —, aconteceu durante uma transmissão ao vivo do jornal O Estado de S. Paulo na semana passada e causou uma enxurrada de críticas e revolta nas redes sociais. Ao fatiar a gravidade da pandemia do novo coronavírus entre uma crise de pobres e outra de ricos, o bilionário mostrou a faceta mais caricata da elite brasileira, que se põe à parte frente aos mais de 11.000 mortos em decorrência da doença, o que coloca o país na 6ª posição em número de óbitos.
O psicanalista afirma que a onda negacionista e
a percepção de estar fora de perigo abrange, sim, uma parte importante
da elite nacional, e tem como base uma crença dessas pessoas de que são
excepcionais, fora de grupos de riscos, já que são privilegiados. Por
isso, podem relaxar regras de isolamento e até promover encontros com
amigos. “Escuto muito isso no consultório. Que as pessoas se sentem
especiais, que são saudáveis, atletas como Bolsonaro e que isso é uma gripezinha. O presidente repetiu à exaustão esse discurso de negação da realidade assim com várias lideranças religiosas.”
Dunker ressalta que essa narrativa se instala mais fortemente na sociedade brasileira pela negação da desigualdade social já existente. “Esta é a realidade primeira da qual nós não queremos saber”, pontua. Em seu livro Mal-estar, sofrimento e sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros,
o psicanalista explica como, há anos, as classes média e alta lidam com
o conflito: com a construção de um muro e a designação de seus
síndicos, responsáveis por manter em dia a dia de seu status quo.
“Essa ideia de negação do conflito e da diferença já estava lá em 1970,
quando inventamos um Brasil em que a gente aparta a diferença. E acho
que agora estamos regredindo para uma maneira de ver o mundo, até
favorecida pelas medidas sanitárias, em que o mundo é o tamanho do seu
condomínio”, diz.
A vida privada dos condomínios é também
uma janela que expõe abismos sociais —em geral, quanto maior a renda,
maior a chance de realizar trabalho remoto. Em meio à escalada do
coronavírus, os locais, em geral, mudaram regras de convivência, com
restrições de acesso a visitas e entregadores. Áreas de lazer e
academias de uso coletivo também foram interditadas, mas, já passadas
algumas semanas de isolamento, embates começam a ser travados entre
vizinhos para afrouxar as medidas, o que pode colocar em riscos
moradores, mas também funcionários que seguem trabalhando. “Esse
trabalhadores nunca deixaram de ser invisíveis, assim como os moradores
de ruas, pedintes, os informais, os precarizados. Eles são formas de
vidas que não fazem parte dos ‘outros’. Mas, no contexto da pandemia,
são também elementos que transmitem o vírus, o que se choca muito com
essa administração imaginária do mundo ”, lembra o psicanalista. Nesta
quarta, provocou debate o fato de o serviço doméstico ter sido
considerado essencial em Belém, que está em regime de bloqueio total de
atividades não essenciais (lockdown), já que os profissionais ficariam impedidos de fazer a quarentena ou cuidar da própria família
por causa da ausência de creches e escolas. O prefeito de Belém,
Zenaldo Coutinho (PSDB), argumentou que pessoas, como profissionais de
saúde, "precisam, pela necessidade de trabalho essencial, ter alguém em
casa”.
Necropolítica já estava aí
Na
visão de Christian Dunker, a pandemia trouxe mais à tona a “equação
obscena” da escolha entra a vida ou a economia fortemente martelada pelo
empresariado. O grupo, por sua vez, tem respaldo ativo de Jair
Bolsonaro. O psicanalista frisa que o movimento apenas escancara a ideia
de ter vidas matáveis que já existia na necropolítica
à brasileira, diz ele, citando um conceito desenvolvido em 2003 pelo
intelectual camaronense Achille Mbembe, que questiona os limites da
soberania do Estado na escolha de quem deve viver e quem deve morrer.
“Neste momento de impasse e crise da economia, vai se comunicar com as
classes mais elevadas e populares a ideia de que é melhor continuar
trabalhando e ganhando do que morrer de fome. Apesar do aumento do
sofrimento e da crise alimentar, obviamente a gente teria medidas de
suporte para isso sem chegar a essa equação”, afirma.
A
insistência no argumento de que é preciso privilegiar o funcionamento da
economia em detrimento das medidas de isolamento social ficou evidente
de novo nesta quinta-feira. Em mais um movimento para pressionar a
retomada da atividade econômica, o presidente levou uma comitiva de
empresários e ministros para a sede do Supremo Tribunal Federal (STF)
para alertar o presidente da Corte, Antonio Dias Toffoli, sobre os
impactos que o isolamento social tem gerado na iniciativa privada e como
a paralisia econômica pode transformar o Brasil “em uma Venezuela”.
“Nós devemos nos preocupar com economia, sim. Mas também com empregos”,
declarou Bolsonaro. “Emprego é vida.” Na ocasião, empresários procuraram
chamar a atenção dizendo que as “indústrias estão no UTI”, alheios às
filas de pessoas que estão morrendo por falta de leitos em vários pontos
do país.
Sairemos melhores da pandemia?
A
disputa sobre o presente e como será o futuro pós-pandemia está por
toda parte, não só na política. Se há os negacionistas, há também os que
encaram a crise global econômica e sanitária como uma espécie de
purgação, limpeza ou uma catarse que o mundo está atravessando. Na meio
disso, as marcas e empresas tentam se sintonizar e se atrelar inclusive a
ações positivas do combate à doença ou à crise econômica, mas nem
sempre o objetivo é alcançado. Nesta semana, a marca carioca Osklen, do
grupo Alpargatas, lançou uma campanha em que vendia duas máscaras de
proteção por 147 reais. Para cada kit vendido, ela doaria uma cesta
básica no valor de 70 reais para a comunidade do Jacarezinho, na Zona
Norte do Rio. A campanha, no entanto, recebeu fortes críticas nas redes
sociais, já que o preço foi considerado abusivo pelos usuários. Máscaras
são tecido são vendidas por menos de dez reais em São Paulo. Muitos
questionavam como a marca queria lucrar em um item essencial para
prevenir a doença. A empresa justificou-se dizendo que o projeto foi
pensado com uma margem de retorno “que apenas viabilizaria a operação”,
além da doação de comida, mas a força da crítica a fez recuar e
"repensar o projeto”.
Para o psicanalista Dunker, o
momento poderá, de fato, levar as pessoas a dois caminhos. Um de
progredir para uma super individualização. “Eu tenho recurso, eu preciso
salvar meu lucro, eu pago respirador, eu sou especial e posso sair na
rua”. E outro de maior solidariedade. “A situação impõe que as pessoas
olhem para o lado, se organizem a ajudar quem está numa situação pior,
de se importarem com a coletividade”. Dunker acredita que há esperança
de que a sociedade saia “um pouquinho melhor” dessa nova realidade
imposta, mas alerta que o discurso de que o mundo se transformará em
outro muito melhor, reverberado por artistas e propagandas é falacioso.
“Porque está dizendo que eu preciso de uma coisa muito grande para a
verdadeira transformação acontecer. As pequenas transformações surgem
das pequenas diferenças”.
conteúdo
Heloísa Mendonça
São Paulo
El País
Nenhum comentário:
Postar um comentário