Na semana em que o Brasil ultrapassou a marca de 2 milhões de pessoas infectadas pelo novo coronavírus e caminhando a passos largos para mais de 100 mil mortes pela covid-19, não se fala em outra coisa a não ser a imunidade coletiva, também chamada de “imunidade de rebanho”, expressão que remete à dinâmica natural de transmissão de doenças infecciosas. De acordo com os cientistas, essa imunidade coletiva acontece quando o número de pessoas resistentes ao vírus atinge uma fração da população suficientemente alta para que ele não encontre mais indivíduos suscetíveis à infecção. As primeiras estimativas científicas apontavam um percentual entre 60% e 70% de infectados para frear a propagação do Sars-CoV-2, mas novos estudos trouxeram otimismo ao apresentar modelos matemáticos que reduzem essa taxa para 43% ou 20%. Os especialistas ponderam, no entanto, que apenas esperar a “imunidade de rebanho”, sem adotar políticas de controle da pandemia, tem um alto custo humano —até milhões de mortes— e não é (ou não deveria ser) estratégia de política pública.
Os
primeiros estudos sobre a covid-19 estimavam 60% de contaminados para
que se chegasse à imunidade coletiva, considerando uma população
homogênea. Um estudo publicado na revista Science no
final de junho, considerando uma população heterogênea, com diferentes
graus de isolamento e interação social, reduziu esse percentual para
43%. Um outro modelo matemático, publicado em maio e
de coautoria de pesquisadores brasileiros, aponta que é possível chegar
à “imunidade de rebanho” com entre 10% e 20% da população contaminada.
Utilizando como exemplo uma cidade como Manaus (AM), onde o elevado número de casos e óbitos por covid-19 provocou o colapso dos sistemas sanitário e funerário, mas que agora vê uma redução das infecções,
Reinach considera que essa imunidade coletiva pode estar perto de
tornar-se realidade em pelo menos alguns locais do Brasil. O biólogo
salienta, no entanto, que, sem testes para confirmar o número real de
pessoas infectadas, tudo não passa de hipótese. “Estudos feitos em São
Paulo demonstram que o número de infectados é até 10 vezes maior do que o
número oficial do Governo do estado, por exemplo. Se esse trabalho
estiver certo, existe a possibilidade de que, em algumas cidades,
estejamos chegando perto da “imunidade de rebanho”, mas é impossível
afirmar isso com certeza sem saber o número real das pessoas
infectadas”, explica. No caso de São Paulo, foi feita uma pesquisa por
amostragem da população, que fez teste para o novo coronavírus. É com
base nela que a Prefeitura da cidade estima que 10% da população já
contraiu a doença.
O diretor para doenças infecciosas da
Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), Marcos Espinal, afirmou, na
terça-feira (14/07), que não há evidências de que qualquer cidade
brasileira tenha atingido a imunidade coletiva contra a covid-19.
Segundo ele, “é estimado que entre 50% e 80% da população de
determinado local precisa ter sido imunizada ou infectada pelo vírus”.
Apesar de discordar das estimativas dos cientistas, Espinal também
destacou que apostar proteção coletiva como estratégia de combate à
pandemia é um equívoco. “O custo em vidas humanas, na economia, na saúde
e na sociedade seria altíssimo”, disse ele, que mencionou ainda a falta
de consenso científico sobre o tempo de imunidade contra o novo
coronavírus. De acordo com uma pesquisa da King’s College de Londres, os anticorpos decaem após três meses do paciente adquirir a doença.
Além
disso, atingir a imunidade coletiva não significa o fim da pandemia,
conforme explica Rodrigo Corder, coautor do trabalho que estima essa
imunidade entre 10% e 20% e doutorando do Instituto de Ciências
Biomédicas da USP. Ele diz que, no modelo matemático, considera-se que a
“imunidade de rebanho” é alcançada quando um infectado transmite o
vírus, em média, para menos de uma pessoa, de forma que a doença não
tenha mais potencial para crescer e desapareça ao longo do tempo. “Ainda
assim, cada indivíduo pode transmitir a doença para 0,9 pessoa, por
exemplo, se não existirem medidas de controle, como o isolamento”.
Dado o atual cenário brasileiro, com medidas conflitantes em relação à
maior flexibilização ou restrição do distanciamento social, o cientista
considera a possibilidade de surtos concentrados em algumas cidades ou
mesmo em diferentes bairros de uma mesma metrópole, como São Paulo, onde
16% da população periférica já se contaminou com a covid-19, média
maior que a da cidade.
Até que o país atinja a tão esperada imunidade coletiva, as
mortes em decorrência da doença podem chegar a milhões e atingiriam,
principalmente, os mais vulneráveis —a taxa de mortalidade por covid-19 é
de 80% entre pretos e pardos sem escolaridade e de 19% entre brancos
com ensino superior, de acordo com uma pesquisa da PUC-Rio—.
Mas
mesmo com a possibilidade de novos pequenos surtos concentrados em
determinados lugares ou entre determinada parcela da população, Corder
evita falar em uma “segunda onda” do novo coronavírus no Brasil.
“Como o país tem uma dimensão continental, com muitas heterogeneidades e
sem uma política centralizada de combate à pandemia, em que cada Estado
toma suas próprias medidas, é difícil prever”, diz.
Para
Fernando Reinach, a estratégia ideal para mitigar a propagação da
doença e salvar vidas é aquela que alguns países europeus que já
superaram o auge da pandemia, como Suíça e Alemanha, vêm adotando: o
controle por rastreamento de contato. A estratégia que utiliza testagem
massiva faz com que, a qualquer sinal de gripe, o cidadão compareça ao
posto de saúde, onde é testado e orientado a ficar em casa, em
isolamento. Se o resultado foi negativo, avisam à pessoa que ela pode
sair. Se for positivo, ela permanece em isolamento e é questionada sobre
com quem se encontrou nos últimos dias. Esses contatos são localizados,
avisados que devem permanecer em isolamento durante 14 dias e, se
manifestarem sintomas, são testados, repetindo todo o processo. “Esse é o
único modo de reabrir a sociedade e manter o número de casos baixo”,
afirma o biólogo.
conteúdo
Joana Oliveira
São Paulo
El País
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